ll. Os dois lados da erva: Medicina Originária X Medicina Ocidental
- Marcos Alves
- 26 de out. de 2023
- 6 min de leitura
Atualizado: 28 de nov. de 2023
Em chamada de vídeo, o cantor Ixã conta a sua experiência como um jovem ocidental que deixou a vida urbana para conviver com o povoado Huni Kuin, no Acre.

(Créditos: Meryelle Oliveira)
Em 2022, enquanto Juliano Mattos assumia o cargo de chefe da CASAI em São Paulo, um jovem no Acre também recebia uma grande oportunidade para sua carreira. Ixã, que canta, compõe e toca violão desde criança, havia sido convidado pelo DJ Alok para uma parceria musical após se conhecerem na aldeia Huni Kuin.
Hugo Gabriel Messias Pantoja, de 21 anos, nasceu em Porto Velho, Rondônia, sem contato com a comunidade indígena. Aos 15 anos passou a conviver com o povoado Huni Kuin, localizado em Rio Branco, Acre, quando sua mãe se casou com o líder espiritual e cacique, Mapu Huni Kuin. Ainda adolescente, adotou um novo estilo de vida e até mesmo um novo nome. Ixã conta que as experiências na aldeia foram essenciais para o seu desenvolvimento pessoal e artístico: “Eu vejo a melhora na minha voz, me ajudou muito a forma como a gente convivia, com uma alimentação melhor e mais saudável. A forma de cantar, de buscar sempre nas canções essa oração. Eu acho que tudo isso foi um processo para que eu me tornasse uma pessoa e um artista melhor.”

Durante a chamada de vídeo, Ixã não está em sua cidade de origem nem na comunidade que o transformou. Está em Londrina, Paraná, onde mora atualmente. Conviver com duas culturas o permitiu enxergar as principais diferenças entre elas na prática, um exemplo mencionado pelo jovem é a forma como os indígenas lidam com as “doenças de alma”. Depois de refletir durante alguns segundos, Ixã chega a conclusão que o nosso corpo é apenas um instrumento da alma e muitas vezes as dores físicas são geradas por uma dor espiritual. Nesse contexto, muitas pessoas vão ao Centro Huwã Karu Yuxibu (projeto coordenado por Mapu Huni Kuin com o objetivo de fortalecer a cultura e espiritualidade do povo Huni Kuin), para se consultar sobre diversas enfermidades. Segundo o cantor, as melhorias são impressionantes e o impactam artisticamente.
(Créditos: Stephanie Carvalho)
Viver no Centro fez com que o garoto tivesse contato direto com projetos e iniciativas indígenas que expandiram sua espiritualidade. Ao ser questionado sobre como acontecem esses processos de cura dentro do Centro Huwã Karu Yuxibu, Ixã descreve o passo a passo das cerimônias que participava: "A gente te recebe, come alguma coisa antes de entrar, super leve, às vezes uma sopa… Fazemos todos os preparativos e acendemos a fogueira. Normalmente é em uma casa de reza e a fogueira fica bem no meio. Sentamos em círculo e apagam-se todas as luzes". Iluminados apenas pelo fogo, o próximo passo é uma "rodada de rapé" e depois, a ayahuasca. No entanto, Ixã deixa claro que ninguém é obrigado a ingerir o chá e, inclusive, só deve beber se sentir que realmente precisa daquilo.
O rapé e a ayahuasca são substâncias de grande importância para a cura na cultura indígena. Nos rituais, são utilizados como meios de expansão da consciência, cura e conexão. Porém, é importante ressaltar que cada experiência é individual e, como citamos anteriormente, existem diversos casos de contraindicação para ingerir as medicinas sagradas. Por isso, devem ser utilizados sempre com a presença de líderes espirituais. "Depois da ayahuasca, tem 30 minutos de concentração. Você fica pensando o porquê tomou, o motivo pelo qual está se conectando com aquele espírito e pedindo proteção. Enfim, colocando o seu propósito naquele ato, para que tudo ocorra bem. Depois tem um rezo que pede para os seres da floresta, as forças maiores e o grande espírito conduzirem aquela cerimônia. Tomando cuidado com cada espírito que está ali, cada alma.”

Com um sorriso involuntário no rosto, o jovem descreve o momento que parece ser o seu favorito em todo o processo, a hora da música: “A gente pega o violão e toca a noite toda… Tem dança em volta da fogueira para quem sentir vontade de dançar. É muito interessante, só quem vive pode falar”. A felicidade não é à toa, afinal, foi em uma situação semelhante que Ixã foi descoberto por Alok. Em entrevista à Rolling Stone, o DJ conta que estava na comunidade Huni Kuin produzindo um álbum inspirado nas raízes indígenas e, no último dia de sua viagem, participou de uma cerimônia na comunidade. Deitado com os olhos fechados, escutou uma voz angelical cantando. O anjo era Ixã, que imediatamente recebeu um convite de Alok para trabalharem juntos. Em seguida, lançaram a música de estreia de Ixã “Meu Amor”

(Da direita para a esquerda, Alok e Ixã. | Reprodução: Instagram via Rolling Stones)
Além das cerimônias, Ixã explica que até mesmo o atendimento médico dentro da aldeia é feito de uma forma “ritualística". Para exemplificar, ele relata sobre o dia que estava com dor de barriga, e antes de qualquer medicação, fizeram uma oração para protegê-lo e afastar as energias negativas. Somente depois recebeu um chá de plantas naturais. “Se estou com dor de cabeça e alguns pensamentos negativos e energias para baixo, eu peço para passar um rapé em mim. Quando eles passam é impressionante! Se você realmente tem a sua fé e acredita que aquilo vai passar mesmo, com certeza ajuda. A fé é fundamental para o processo inteiro acontecer.”
De volta à vida urbana em Londrina, o artista explica que o contato com os métodos naturais fez com que ele revisse a forma de consumir remédios de farmácia. Hoje, se considera cauteloso em relação à quantidade de químicos, dando preferência aos naturais sempre que possível. Por outro lado, também faz questão de destacar que, em determinadas situações, não abre mão de remédios da medicina não indígena pois respeita a ciência, e acredita que o ideal é balancear os dois lados. Ele conta orgulhoso que esse é justamente um dos objetivos do Centro Huwã Karu Yuxibu, ter um sistema de saúde duplo, com a medicina indígena e ocidental, além de investir nos conhecimentos originários para desenvolverem mais estudos e torná-la mais “científica”, pelas palavras de Ixã.

(Captura do clipe "Verão" | Reprodução: YouTube)
A fim de nos aprofundarmos ainda mais nos projetos de saúde indígena, em outra chamada de vídeo conversamos com Milena Cristina e Wagneyza Fernandes Sobrino, que trabalham na Coordenação dos Povos Indígenas, como coordenadora e assessora, respectivamente. Elas explicam que essa é uma coordenação recente, que está alocada na Secretaria de Direitos Humanos e por mais que não seja competência desse setor acompanhar políticas públicas dentro da expertise de saúde, podem trabalhar de forma conjunta com as Secretarias responsáveis. Segundo Milena, “os indígenas que estão em aldeias têm uma política pública para saúde indígena. Há UBS’s nas aldeias que fazem parte desta política municipal que atendem a comunidade indígena daquela região. Mas, há indígenas que não estão em contexto de aldeia e sim em contexto urbano. As Unidades Básicas precisarão atender essa comunidade porque o SUS é universal e deve atender qualquer pessoa.”
De fato, o SUS deve ser universal. Conforme consta no Artigo 196 da Constituição Federal de 1988, "a saúde é direito de todos e dever do Estado". No entanto, bastou trocarmos de reunião para encontrarmos uma história contrária. Ixã relembra uma situação que viveu na cidade de Rio Branco, quando precisou acompanhar uma mulher indígena prestes a dar à luz e teve atendimento negado na UPA que não era específica para as comunidades indígenas. Segundo o artista, eles precisaram intervir de forma séria, alegando que tomariam medidas de processo pela situação. “Eles não podem negar esse pedido, ela também é cidadã e tem todo direito”. O cantor desabafa que essa foi apenas uma situação que ele por acaso presenciou, mas imagina que deve acontecer com muita frequência ao redor do Brasil e serve como um alerta para a população.
Outra preocupação de Ixã é em relação à saúde mental de jovens indígenas quando passam a conviver em contexto urbano. Por isso, destaca a importância do Centro Huwã Karu Yuxibu, como forma de reafirmar a identidade indígena através de rotinas como a alimentação, falar o dialeto da comunidade e a prática de tradições. Para Ixã, manter esses hábitos pode evitar as crises de identidade e o sentimento de não pertencimento que ele tanto observa entre os jovens. Como alguém que esteve entre as duas culturas, o cantor entende que embora a sua experiência na comunidade indígena tenha trazido diversos benefícios pessoais e profissionais, o contrário pode ser bem diferente. Por isso, agora é necessário ouvirmos as histórias de quem de fato estamos falando.
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