lll. A Moral da História - Raízes da cultura: saúde, cura e tradições
- Marcos Alves
- 24 de out. de 2023
- 8 min de leitura
Atualizado: 30 de nov. de 2023
Em uma visita a uma aldeia indígena às margens da sociedade não indígena, Michael, representante da aldeia Tekoa, comenta sobre os processos de cura, ervas e plantas existentes em sua cultura.

(Arredores da aldeia Tekoa Pyau | Foto: Arquivo Pessoal)
Em uma visita à aldeia Tekoa, localizada em um dos pontos mais altos de São Paulo, o Pico do Jaraguá, pudemos esclarecer algumas dúvidas sobre os processos de cura e as ervas utilizadas nos rituais da medicina originária. Recebidos pelo representante da aldeia, Michael (Tupã em Guarani), fomos levados à Casa de Reza, onde os moradores da aldeia se reúnem todas as noites para rezar e conversar. Foi dentro do espaço escuro que demos início à entrevista.
Michael, apesar de ser representante da aldeia Tekoa, não é natural dela. Nasceu na aldeia Tenondé Porã, na Zona Sul de São Paulo, porém foi criado em várias outras aldeias antes de chegar na Tekoa. “Venho de uma família que mora bem isolada da cidade, em área de mata fechada mesmo, por mais que eu esteja aqui hoje na aldeia urbana, onde não tem muita mata ou floresta”, afirma.
O povoado é localizado em local urbano, longe de grandes florestas e mata. Mesmo afastados do que seria “ideal” para um povoado originário, os costumes e tradições são mantidos. Ao adentrar a aldeia, imediatamente somos tomados pela sensação de natureza e simplicidade. Apesar da romantização da cultura, o povoado vive em precariedade de estrutura, enfrentando dificuldades em épocas de clima intenso, como temporais e temperaturas baixas. Durante o percurso, testemunhamos casas que mal comportariam uma família de três pessoas e seus pertences pessoais. Apenas a aldeia Tekoa Pyau comporta cerca de 360 moradores, sendo apenas uma entre os oito povoados existentes no Jaraguá.

(Casa na aldeia | Foto: Arquivo Pessoal)
Embora a localização permita contato constante com não indígenas, a presença da equipe de reportagem causou estranhamento aos moradores da aldeia, que nos gravavam e comentavam (parte das vezes em seu próprio idioma) insistentemente. “Os mais jovens e as crianças já estão acostumadas a conviver com os não indígenas, eles são nossos vizinhos e não interferem em nada”, conta Michael, apesar do desconforto causado pela nossa presença. No entanto, as crianças realmente pouco se importaram com nossa visita. Em certo ponto do trajeto, a equipe, que explorava a aldeia por conta própria, foi confrontada por Nelson, que afirmava ser um dos representantes da aldeia. “É que a gente não conhece, não sabemos o que vieram fazer aqui.”, conta Nelson ao entender o motivo da nossa visita. Quando questionado sobre manifestações de intolerância contra a cultura daquele local, Michael afirmou que não existem registros de ataques ou interferências policiais. Tentativas de diminuir a cultura indígena com base em sua localização urbanizada caem por terra ao conhecer a aldeia, que carrega os traços da cultura originária e não é engolida pela cidade que a cerca. Mesmo assim, estão localizados longe das grandes florestas, que têm muito significado para os povos originários. “Ela (a floresta) é nossa fonte de sobrevivência e é através dela que sabemos onde tem o ar e a respiração que precisamos”, alega Michael. “A mata é nossa fonte de fortalecimento também. Cada árvore, cada pedra e recurso natural tem seu próprio espírito que acreditamos e respeitamos. Então, quando vemos as queimadas, os desmatamentos e o destruimento do meio ambiente em geral, sentimos muita tristeza pelo nosso povo e por todos os povos originários.”, conclui.

(Crianças indígenas jogando futebol no campo da aldeia Tekoa | Foto: Arquivo Pessoal)
A surpreendente variedade de plantas e ervas utilizadas em processos medicinais e a sabedoria indígena a respeito de cada uma delas é digna de espanto. O conhecimento carregado pelo povo originário por meio da vivência nas aldeias transmite ensinamentos que se perpetuam através das gerações. Em determinado momento da nossa visita à aldeia Tekoa, uma criança de pouco mais de 5 anos nos abordou e apresentou uma planta, a qual ela afirmou ser “planta de pimenta”. A pequena indígena também nos mostrou uma fruta que nasceu de tal planta e que, em suas palavras, “é de comer”.
Michael conta que antigamente não existiam escolas com papel e caneta para que pudessem aprender. O conhecimento era transmitido dentro das casas de reza, por meio dos ensinamentos dos mais velhos aos mais novos. “Nossa escola era uma casa de reza, onde toda noite a gente entrava para escutar os mais velhos falando sobre a questão das ciências globais como o tempo, meses, ciclos da lua e muito mais. Nós aprendemos dentro da casa de rezas com nossos sábios.”
Michael nos conduziu até a pequena horta da aldeia, onde cultiva algumas dezenas de espécies de plantas diferentes, algumas frutíferas e outras não, mas todas com uma finalidade. O conhecimento sobre o uso de cada planta é transmitida pelos mais velhos, “eles nos mostraram e ensinaram a gente o que fazer para que nossos filhos e parentes não fiquem doentes. Quando a gente pega a planta, tem que pedir autorização para o espírito das plantinhas e para nosso pai criador, ele que criou os remédios e a medicina. A gente acredita que antes de tirar tem que pedir a autorização e a cura para o espírito.”, explica.
Ao ser questionado sobre quais são as plantas mais utilizadas no tratamento de enfermidades, o entrevistado nos contou sobre a Guiné, uma planta medicinal com propriedades diuréticas (medicamentos que auxiliam na eliminação do sódio), anti-inflamatórias, antirreumáticas (capazes de auxiliar no tratamento de músculos, ossos ou articulações) e sedativas. “Essa é a guiné, o remédio mais procurado para cura, usada para espantar o espírito do mal mesmo, funcionando como um Gelol mais forte se misturado com hortelã.”, explica. “É usada para curar a maioria das doenças, mas sempre tem uma mistura como alho, cebola e álcool principalmente. A gente usa bastante para fortalecer, curar dores de cabeça, dores de barriga...”, conta Michael. Em outro exemplo, cita que a
Pipi, Guiné em Guarani, trata o corpo dolorido, alguma ferida e também pode ser usado em tratamentos espirituais. Às vezes, torna-se necessário que saiam da aldeia para conseguir os ingredientes necessários para algum ritual ou para outro fim específico. “Existem algumas coisas que nós compramos, como o alho e a cebola, mas outras plantas como a guiné, hortelã e arruda, nós temos uma plantação”.
Durante a entrevista na horta, Michael foi capaz de citar o uso de diversas das espécies ali cultivadas. “As folhas da amoreira servem para acalmar o choro das crianças pequenas. Usamos junto à água gelada e é passada na cabeça das crianças para resfriar o corpo”. Em outro exemplo, conta que as folhas de limoeiro são utilizadas para fazer um chá que, junto ao mel, é capaz de curar a bronquite: “Aqui nós temos uma hortinha que tem pimentão, hortelã, milho guarani, mandioca, arruda, que usamos para banhar as crianças pequenas e ajudar a dormirem bem.”, conta empolgado. “Temos uma bananeira, há um líquido branco que sai e a gente usa quando as crianças estão com uma ferida na boca, é passado um pano banhado com o líquido três vezes ao dia.”, conclui com outro exemplo do uso das plantas na aldeia. Segundo Michael, a folha da pitanga também tem propriedades medicinais desconhecidas pela maioria dos não indígenas, que apenas conhecem o fruto. “A pitanga todo mundo conhece, mas a gente usa a folha dela para fazer chá para ajudar na dor de barriga das crianças menores de até três anos”, explica enquanto apresenta a folha para a equipe. “Temos o boldo que usamos para o adulto”, indicando a alternativa de tratamento para os mais velhos. Michael conta que sua mãe trabalha bastante com medicina, e utiliza muitas misturas de plantas. Isso porque, muitas vezes, as propriedades de apenas uma espécie de planta não são suficientes para suprir as necessidades do tratamento. Para exemplificar, diz que “é igual remédio de farmácia, tem que misturar tudo”.

(Michael Tupã, representante da aldeia, em horta coletiva | Foto: Arquivo pessoal)
A aldeia Tekoa conta com a UBS Aldeia Jaraguá (Kwaray Djekupe), que é uma unidade básica de saúde que presta atendimento direto aos indígenas do Jaraguá. Michael diz que o serviço da unidade é satisfatório e que podem contar com atendimento médico e odontológico. “Eu acho super 100%, é um atendimento muito bom que eles tem com a gente e é bem próximo”, diz. No entanto, também afirma que, apesar do bom atendimento da UBS, a sua cultura dá prioridade à visita ao Pajé, que dirá se o acompanhamento de tais unidades será ou não necessário. “Se minha filha está doente ou sentindo alguma dor, a gente passa por consulta com o Pajé que vai falar se a gente precisa passar com o médico e ir em alguma farmácia.”, afirma. Michael acredita que a medicina originária e a medicina ocidental podem andar juntas, porque “a gente sabe também que todas as medicinas ocidentais que temos hoje foram aprendidas pelo não indigena através do indigena que descobriu diversos tratamentos tradicionais que viraram o remédio da farmácia.”
Os benzimentos são sempre realizados por um pajé, “aqueles que curam através da reza e das plantas”, nas palavras de Michael. “Toda aldeia e etnia dos povos originários tem o seu Pajé. São aqueles que curam as pessoas através da reza e da medicina tradicional ou através do cachimbo, que é do meu povo Guarani”, comentou ao ser questionado sobre os especialistas de cura. O pajé é a figura mais importantee de um povoado indígena, e tem atribuições importantes, como passar adiante o aprendizado, histórias, tradições e costumes de um povo. Seu conhecimento a respeito de rituais, ervas e plantas o torna o curandeiro da aldeia. "Temos os nossos sábios que são mais velhos, e que podem sem tanto homens como mulheres, e que curam as pessoas através do cachimbo e através da reza", explica Michael.

(Centro de Educação e Cultura Indígena (CECI) | Foto: Arquivo Pessoal)
A pandemia do COVID-19 não foi uma batalha restrita à cultura não indígena. A aldeia Tekoa Pyau teve, assim como o resto do mundo, que lidar com um vírus mortal e desconhecido. Sua proximidade com a cidade talvez tenha ajudado na disseminação da doença pelo território indígena do Jaraguá. Outra vez, no entanto, os conhecimentos milenares se fizeram presentes, e por meio da já citada Guiné, uma das diversas plantas medicinais cultivadas pelo povoado, o tratamento do primeiro caso de COVID-19 se fez possível. “Como nós vivemos no meio da cidade, a primeira pessoa que foi infectada pelo coronavírus foi tratada com a Guiné”. Não diferente de outras culturas, o isolamento na aldeia Tekoa foi necessário para diminuir o avanço da contaminação. “A gente teve também um hospital provisório na escola CECI Jaraguá (Centro de Educação e Cultura Indígena), muita gente ficou isolada durante os quinze dias, eu mesmo fiquei lá.”, afirma Michael. “Tenho certeza que 100% da aldeia foi infectada, mas graças a Deus que ninguém teve um caso mais grave”, comenta.
Socialmente desfavorecidos e com fatores de risco como a mortalidade indígena pelo novo vírus à época (16,7% maior do que a observada na população brasileira geral), os povos indígenas não foram considerados inicialmente como grupo prioritário para a aplicação de vacinas pelo Ministério da Saúde, como aponta reportagem da BBC. A reportagem também acusa as dificuldades de acesso às aldeias em matas fechadas, a disseminação de notícias falsas e tendenciosas que se espalharam pelas aldeias, a influência de profissionais da saúde negacionistas e a falta de investimentos como motivos para a ausência de vacinação nas aldeias.
Fica evidente que os conhecimentos originários a respeito da cura do corpo humano são de grande importância para futuros avanços na medicina, assim como reconhecer e respeitar a cultura que possibilitou a criação de medicamentos tão populares nas prateleiras de farmácias e tratamentos hospitalares por todo Brasil e mundo afora. Creditar os povos indígenas é reconhecer sua sabedoria como a responsável pelos tratamentos que existem hoje em dia. A herança de quem originalmente habitou as terras que tomamos como nossas deve ser reconhecida e protegida como um tesouro nacional. Apoiar projetos que promovam a perpetuação dos costumes e tradições, a proteção de suas terras e o respeito ao seu povo é de dever de todos que já se beneficiaram, mesmo que indiretamente, do conhecimento que o povo carrega.
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