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l. Nós, não indígenas: estamos fazendo o suficiente?

  • Foto do escritor: Marcos Alves
    Marcos Alves
  • 26 de out. de 2023
  • 11 min de leitura

Atualizado: 30 de nov. de 2023

Juliano Mattos, chefe da CASAI- SP fala em nome do Ministério da Saúde e afirma que incentivo ao bem-estar indígena não é suficiente. Ighor Bley, pós-graduado em farmácia, conclui que a medicina ocidental deve muito aos processos originários.

(Foto: arquivo pessoal)


No Brasil, a única política de saúde que conta com 34 Distritos Sanitários Especiais, é a política de saúde indígena. Os DSEI's foram implantados de acordo com a localização geográfica dos povos no mapa e considerando os costumes e tradições de cada etnia. Em cada um dos Distritos, localiza-se um Polo Base, uma Unidade Básica de Saúde e a CASAI (Casa de Apoio à Saúde Indígena) correspondente da região. Em paralelo, uma pesquisa realizada pela Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade definiu que a taxa de mortalidade por suícidio nas comunidades indígenas é o triplo da média nacional. As “doenças de branco” estão se tornando cada vez mais frequentes e por mais que esta política de saúde seja, entre milhões de aspas, a mais assistida do país, pode ser considerada, na mesma proporção, a com piores índices de inadimplência. Nós, não indígenas, estamos fazendo o suficiente? Juliano Mattos, chefe de uma das duas únicas CASAIS Nacionais do Brasil, afirma que "o apoio atual não atende às necessidades da população originária."


Estamos no prédio da Casa de Apoio à Saúde Indígena de São Paulo. Às margens do Ipiranga, a Casa de dois andares abriga, no máximo, 20 pacientes com direito a um acompanhante cada. Mesmo considerando as poucas vagas, a CASAI de São Paulo e a CASAI de Brasília são as únicas Casas com o status de “nacional”, podendo acolher pessoas de todo o país. A Casa de Apoio à Saúde Indígena é o local responsável por abrigar pacientes com necessidades mais complexas, comparadas às que podem ser tratadas nas Unidades Básicas de Saúde (UBS) presentes em cada Distrito Sanitário. Recebidos por Juliano, adentramos uma sala localizada no segundo andar. Limpo e despoluído visualmente, o ambiente continha alguns ítens indígenas, aparentemente colocados sem nenhuma análise profunda.

(Foto: arquivo pessoal)


Receptivo e aparentemente sobrecarregado na mesma proporção, Juliano Mattos, de 39 anos, é Servidor Público por meio do concurso de Analista Técnico de Políticas Sociais, desenvolvido pelo Ministério da Saúde em 2012. Atuante desde 2013, Juliano morou em Brasília por 5 anos e em dezembro de 2020 assumiu o cargo de chefe substituto na CASAI - SP, tomando a posição de chefe apenas em julho do ano passado. Esfregando o rosto constantemente em tom de exaustão, Juliano se mostrava um líder muito prestativo, com funções além do proposto sobre o cargo que assumiu. “Nós fazemos uma ação todo mês. No Setembro Amarelo, fizemos uma abordagem diferente, sempre voltado para saúde indígena. Outubro Rosa vai ter também. Nós os levamos para passeios mais gerais, como o Butantã e outros mais específicos, como o Museu das Culturas Indígenas. Essa parte pedagógica é a gente mesmo que faz. Não é 100%, mas tentamos fazer algumas coisas. Não temos psicólogo e nem pedagogo, quem faz as coisas é a Jessica (Assistente Social) ou eu mesmo”. “É muita coisa”, disse Juliano algumas dezenas de vezes enquanto esfregava o rosto.

(Foto: arquivo pessoal)


Ainda sobre os colaboradores, Juliano conta os “7 ou 8” funcionários com descendência indígena do recinto. Em um bate-papo breve com a Coordenação dos Povos Indígenas do Estado de São Paulo, também fomos informados que o time deste órgão é formado também, apenas por duas pessoas. Segundo Juliano, a maior diferença no atendimento da CASAI está concentrada nestes profissionais que, mesmo assim, no fim das contas, não são suficientes. “Eles fazem muita diferença pra gente. Realmente são indígenas. Na hora de falar eles lembram das tradições, mas, acho que deveriam ter mais”. Dando continuidade ao assunto das faltas, o chefe conta que a melhora no orçamento está no nível de urgência. “Precisamos de mais orçamento porque a demanda só tende a crescer. Somos uma CASAI Nacional agora e os Distritos estão entendendo que dá pra mandar (pacientes). Estamos num momento de valorizar mais os indígenas, como um todo e acho que 40 vagas é muito pouco.”


Do outro lado da cidade, éramos recebidos com abraços calorosos por um detentor do conhecimento científico. Em uma sala espaçosa com adornos religiosos, utilizada para desenvolver rituais de matriz africana, estamos no cenário em que Ighor Bley Pestana escolheu para se sentir mais confortável com a entrevista. Farmacêutico pós-graduado e propagandista da multinacional farmacêutica Eurofarma, Ighor também é líder religioso e defensor efervescente da medicina originária. A formulação desta ideologia se deu após a realização de um tratamento com ervas, para uma condição respiratória que Ighor obtinha. Aos 19 anos cogitou estudar farmácia após receber um chamado. “Uma entidade me falou que eu precisava trabalhar com plantas e eu escolhi fazer farmácia por isso. Sempre acreditei muito na parte médica das plantas”, relata.


Conhecendo a medicina originária e a ocidental, do ponto de vista acadêmico, Ighor demorou para responder quando questionado sobre a diferença entre os dois sistemas. Ele conclui que tudo depende do movedor dos montes: o dinheiro. “Tem uma diferença básica. A medicina indígena não demanda custos para sobreviver. A alopatia (nome dado a métodos da medicina ocidental) demanda que você compre pra pagar a pesquisa”.

(Foto: Arquivo Pessoal)


Por mais que tenha tomado o papel de defensor dos tratamentos indígenas assim como Juliano, Ighor explica que o processo de investimento pode ser complexo, pois, em sua perspectiva, todo e qualquer retorno financeiro precisa ser revertido à valorização do conhecimento original. “Quanto custa o saber?”, ele se pergunta. “Toda verba que entra de uma pesquisa de conhecimento indígena precisa reverter para a sabedoria indígena. Esse seria o primeiro passo. Acredito que a planta precisa ser explorada no Brasil e, se for alguém de fora, que não venha acabar com a floresta e não reverter em nada para quem é do saber. Basta proteger o índio no lugar certo”.


Falando sobre o desenvolvimento dos remédios ocidentais, Ighor diz que, resumidamente, a parte natural é a “base” da medicação que conhecemos hoje. “O Carbolitium é um estabilizador de humor com 72 anos. É basicamente feito de Carbonato de Lítio. É um medicamento que você compra na farmácia, só que ele é oriundo da natureza, uma sabedoria milenar. Na saúde mental, tem diversas ervas. A camomila, conhecida como calmante, o capim ou a erva cidreira para acalmar.” O farmacêutico relembra que, de acordo com os ensinamentos originários, cada tratamento é definido de forma individualizada, causando males no caso de aplicações incorretas: “Uma planta causa intoxicação também. Você tem que saber dosar. Um punhado pra mim é uma coisa e, pra outra pessoa, pode causar outro efeito”.


A "usabilidade" de plantas, levando em consideração a medicina indígena, possui restrições como qualquer outra. Isso quem afirma é o neurocientista Dráulio Araújo em conversa sobre o uso de Ayahuasca com o Profissão Repórter. “Assim como qualquer substância, a Ayahuasca não é pra todo mundo. Pessoas com propensão a surtos psicóticos, por exemplo, não devem consumir o chá.” Permanecendo no assunto de contraindicações, Juliano, Chefe da CASAI, conta que além do tratamento ocidental é permitida a continuidade dos tratamentos indígenas nas Casas de Apoio, desde que a condição do espaço seja favorável: “No ambiente hospitalar não dá. Aqui, pedimos que nunca seja feito em lugar fechado, que façam lá atrás (espaço aberto)”.


Reforçando a possibilidade dos pacientes permanecerem realizando os tratamentos originários nas Casas de Apoio, Juliano fala de boca cheia sobre a permissividade quanto a entrada do Pajé no edifício a pedido dos pacientes para realização das rezas. Ainda que demonstrando boa impressão quanto a esses tipos de procedimentos, Juliano repete algumas vezes que o apoio aos processos originários é bem recebido não só por crenças individuais, mas por obrigatoriedade da Política de Saúde Indígena. “É bem tranquilo pra eles entrarem aqui (pajés). Eu dou a autorização e converso com a equipe de enfermagem. A política existe justamente para valorizar não só a medicina contemporânea. O que eu mais vejo eles fazendo é a reza com os pajés. Porém, tem o sincretismo, né? Quando tem outra família no quarto tem que perguntar se é permitido”.

(Foto: arquivo pessoal)


Em contexto, os pajés são figuras vistas com propósito de liderança na cultura indígena. Escolhidos através de um chamado, os novos pajés são ensinados por lideranças mais velhas sobre os saberes religiosos mais importantes e sobre o uso correto de plantas para o tratamento de enfermidades. Por mais que essa seja a definição majoritária entre os povos, há uma diversidade imensa de relatos de povoados que foram “evangelizados”, sem consentimento, por visitantes da sociedade não indígena. Procurando por alguns minutos a palavra adequada para definir a ideologia cristã de algumas etnias, Juliano relutou muito até defini-los como “urbanizados”, o que justifica a necessidade de perguntar à família alocada se a reza pode ser desenvolvida. “Recebemos muitos indígenas que são evangélicos. Você vê evangélico, católico… Mas, mais evangélicos. Eles chegam aqui, não sei se é bem essa palavra… urbanizados. Alguns já misturam, o sincretismo entrou bastante”.


Ainda que a medicina originária e ocidental sejam semelhantes no tratamento de doenças diversas, consideramos até aqui as condições pré-existentes, mais comuns dentre os povoados. Como recorrer no caso de patologias nunca antes estudadas entre ambas as sociedades? A COVID-19 assustou todos os povos e as etnias indígenas não foram uma exceção. Ao contrário do que se imagina, Juliano, chefe da CASAI, conta, surpreso, que não houveram preocupações quanto à superlotação do espaço, já que a grande maioria dos pacientes relutou em se deslocar até a Casa de Apoio: “Aqui foi diferente. Nós só atendemos por demanda referenciada (agendada), não atendemos de forma espontânea. Sem COVID já é difícil eles virem, porque têm que sair lá do Amazonas, Roraima… e demora pra conseguir vagas aqui. Na COVID a maior parte desistiu do tratamento. Ficaram com medo de vir pra cá”.


“Casa de Apoio” inicia-se a definição da CASAI e, mesmo que pareça um ambiente de ampla receptividade, o “encaminhamento” de um paciente partindo de outro estado para a unidade de São Paulo é no mínimo um processo desesperançoso, tanto pela deficiência de recursos, quanto pela burocracia da solicitação de vagas. Na CASAI - SP, há apenas dois carros e uma quantidade um pouco maior de técnicos de enfermagem, artifícios os quais a equipe “pede para SESAI (Secretaria de Saúde Indígena) e eles sempre dizem que estão sem orçamento”, nas palavras de Juliano. Para que enfermos de outras regiões possam recorrer à Casa é preciso que o Distrito correspondente do povoado defina se o paciente precisa ou não de um tratamento específico. Depois, solicitam uma vaga para o “Setor de Passagem”, que envia o ofício e o formulário. Segundo o próprio chefe da casa, “a coisa tem que ser bem acertadinha e o processo é burocrático e nem um pouco organizado”. Juliano diz que “só descobriu os trâmites da gestão após vivê-la no dia a dia”.


Por esse e outros motivos, o portal da National Geographic publicou uma matéria que afirma que, durante o período pandêmico, uma parte considerável dos povoados indígenas recorreu ao tratamento originário. Em alguns casos, a chegada até os povos de determinada etnia pode demorar até 15 dias, com o uso de barcos ou aviões. Na publicação, o entrevistado Ercolino Jorge Araújo diz: “Vou usar o benzimento tradicional e, desse jeito, vai curar mais rápido. Dito e feito, acertei”. Na mesma pesquisa, menciona-se que até levar informações sobre o uso de máscara e álcool em gel foi um desafio. “Parte da comunicação teve que ser traduzida e cartilhas foram escritas em diferentes idiomas, já que o português é uma das 16 línguas faladas por lá”.


Do lado coroa da moeda, Ighor, o farmacêutico, relembra que o período da COVID-19 foi uma fase de “autoconhecimento”. “Eu passei pela pandemia hiper bem. A gente começa a se conhecer de uma outra forma.” Ighor relembra também a utilização dos conhecimentos originários para montar uma fórmula que provocasse melhorias respiratórias. “A gente fazia um tratamento que basicamente era água e algumas plantas que desobstruem a parte respiratória. Colocávamos em uma bacia de água e era como inalação.” Quando questionado sobre a eficiência deste método para alguém que obteve sintomas graves, Ighor respondeu com precisão e criticou os remédios ocidentais: “Com certeza ajudaria. Se você pegar alguns medicamentos (ocidentais) que a grande maioria das pessoas usa pra ajudar a respirar, é ótimo só nos primeiros minutos. Quando os brônquios voltam ao normal, eles voltam piores. Então você usa mais e mais”. Uma pesquisa do portal UOL revelou, por meio de uma análise médica, que o uso indevido de descongestionantes nasais realmente pode causar vícios.


A medicina originária se mostra versátil, desde níveis de gravidade preocupantes ao tratamento de gripes através do rapé. Na conversa, Ighor acrescenta que possui razões para acreditar que métodos de cura para doenças cancerígenas estão escondidos no saber indígena: “Para curar o câncer, acredito que exista muito no saber indígena e eu sou sempre a favor da planta. Quando você pega algo que é puro e sabe manipular, você consegue atingir a essência”. Já mencionamos aqui sobre o desenvolvimento de medicamentos através do aprendizado indígena como base. Porém, essa prática é muito mais antiga do que aparenta. No século XIV, a malária era uma condição que causava aquilo que chamamos “morte comum” na Europa. A cura era improvável e a morte esperada. Na América do Sul, as populações indígenas, consideradas inferiores do ponto de vista europeu, já utilizavam o

extrato da casca de cinchona para combater os sintomas da malária. Impressionantemente funcional, o método foi levado para Europa e, de quebra, ainda rendeu a invenção da água tônica.

(Foto: arquivo pessoal)


No caso do câncer, métodos naturais e efetivos como esse ainda não foram encontrados. Um exemplo da ausência de pesquisas que comprovem a teoria de Ighor sobre os mistérios do saber indígena, é a trajetória de uma família, residente da CASAI -SP. Juliano contou que um caso de câncer ocular faz com que uma família seja obrigada a permanecer na CASAI desde maio do ano passado. O problema da internação é que esta família faz parte de um povoado localizado em Tabatinga, no Amazonas. Tentando promover uma visita ao povoado, Juliano solicitou que os pacientes pudessem ao menos retomar um pouco de suas tradições. “As passagens deram mais de R$ 15 mil. Imagina se eles quisessem ir todo mês? Não dá. A SESAI não consegue. Agora no Natal vamos tentar de novo”.



Um dos maiores receios da equipe das Casas de Saúde é a extinção da identidade cultural. Considerando doenças com níveis de gravidade superiores, casos que demandam mais de um ano de tratamento ocidental podem ser comuns. “É um pouco controverso. Estamos dando a saúde, mas, dependendo da característica da doença, acabamos tirando a cultura deles.” É possível dizer que, caso os procedimentos médicos de doenças específicas pudessem ser realizados nos polos regionais de saúde, a “perda de identidade” mencionada por Juliano não seria uma preocupação, já que o deslocamento do indígena entre o seu povoado e a unidade de saúde seria facilitado. Quanto a essa possibilidade e a otimização da estrutura desses Distritos para atender demandas especiais, Juliano diz sem gaguejar: “Teoricamente, a saúde indígena foi criada só para ter atenção básica”.

A afirmação acima pode explicar os questionamentos dos povos originários sobre a efetividade e até a “intenção” dos tratamentos realizados por profissionais de saúde não indígenas. O que pode parecer apenas uma desconfiança, aparenta ter custos caros em determinadas situações. Juliano relembra, em tom de chateação, o caso de uma senhora que ficou hospedada na CASAI até começar a desconfiar da eficiência dos métodos realizados na Casa de Apoio: “Uma senhora desistiu do tratamento do câncer.


(Divulgação da ação de saúde mental da CASAI)


Voltou para a aldeia e ficou fazendo só o tratamento deles (indígena). Avançou demais. Quando ela chegou aqui novamente, já não dava…”

Apesar das abordagens distintas, tanto Ighor como Juliano entraram em um consenso sobre a forma de tratamento mais efetiva no caso da maioria das enfermidades existentes nos dias de hoje. Verbalizando de maneiras semelhantes, Juliano chegou à conclusão de que “tem que sempre fazer a abordagem dos dois sistemas” e Ighor definiu o uso dos tratamentos indígenas e ocidentais como uma “associação”. O farmacêutico ainda completou: “Acredito que a sinergia (entre medicina indígena e ocidental) te leva à excelência muito mais fácil”. Ele exemplifica: “Muitas vezes a pessoa toma um remédio para ansiedade e faz um chazinho com erva cidreira. É uma associação”.


O avanço de pesquisas que reforçam ambas as medicinas são dignas de atenção. Entretanto, é esperado que o progresso e a valorização do saber indígena seja menos assistido e mais desconfiável sob os olhos da ciência ocidental. Na universidade onde Ighor se graduou, a metodologia do estudo se diferenciava dos pré-conceitos moldados por uma parte da indústria farmacêutica. “O indígena é o grande sabedor. Nossa função dentro da faculdade era pegar o saber indígena, trazer para a parte técnica e comprovar isso”. Levado como exceção, o método aprendido por Ighor ainda não é absoluto na comunidade acadêmica e, segundo os relatos de Juliano, essa ideia de valorização também não é comum nos projetos de saúde do Gabinete. Quanto tempo levará para que o conhecimento original seja levado com seriedade? A resposta para essa pergunta só pode ser deduzida considerando que, somente em 2010, foi criada uma Secretaria específica para lidar com a saúde indígena e, somente em 2019, a CASAI São Paulo, referência das Casas de Apoio das outras regiões foi considerada “Nacional” e possibilitou o acolhimento de pacientes de outros estados do país, carentes de estrutura própria. É preciso, acima de tudo, perguntar aos não indígenas: estamos fazendo o suficiente?


 
 
 

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